Estudo brasileiro inédito mostra que cirurgia de retirada de coágulo responsável pelo derrame é vantajosa para pacientes e para o sistema público de saúde. A taxa de mortalidade cai 16% e a chance de não haver sequelas aumenta 3,4 vezes, entre outros benefícios
O tempo de ação para evitar consequências graves de um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico é curto. Em questão de horas, o entupimento do vaso que leva sangue ao cérebro pode matar ou causar sequelas graves. Também por isso, escolher o melhor tratamento para a complicação pode fazer a diferença tanto para o paciente quanto para o sistema de saúde, demonstram pesquisadores brasileiros em um estudo divulgado neste mês, na revista The New England Journal of Medicine. Segundo a equipe, submeter vítimas de derrame a uma terapia que combina o tradicional uso de medicamento com uma cirurgia de retirada do coágulo resulta em uma série de vantagens, como redução do risco de morte, menor tempo de internação e melhor desfecho clínico.
Para chegar à conclusão, os pesquisadores avaliaram pacientes atendidos em oito hospitais públicos — um deles o Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF) — após sofrerem AVC isquêmico agudo, quando o acesso a uma grande artéria do cérebro é comprometido. Em parte dos pacientes, foi administrado o remédio para a dissolução química do entupimento. Outro grupo recebeu a medicação e foi submetido à trombectomia, uma espécie de cateterismo que consegue “pescar” coágulos. Ao comparar a evolução de quase 300 voluntários, a equipe constatou que a terapia combinada — medicamento e cirurgia — reduziu a mortalidade em 16%, aumentou em 3,4 vezes a chance de não haver sequelas e em 2,6 vezes a chance de os pacientes ficarem independentes, entre outros benefícios.
A neurologista Letícia Rebello, que participou da etapa no HBDF, conta que os resultados obtidos foram tão significativos que o grupo encerrou a pesquisa com um número menor de pacientes do que o previsto. “Já tínhamos um forte poder estatístico mostrando a superioridade da terapia combinada”, diz. “Geralmente, acompanhamos esses pacientes por um ano, sendo que a primeira análise ocorre em três meses. Já nessa avaliação, conseguimos observar a melhora em termos de recuperação funcional, de independência nas atividades do dia a dia. As pessoas que fizeram a trombectomia voltaram a ter movimento, a falar”, detalha a médica, que contou com a parceria dos neurocirurgiões Eduardo Waihrich e Bruno Parente no Hospital de Base.
Letícia Rebello ressalta que o tratamento combinado é indicado para o AVC isquêmico mais grave, que corresponde a 30% a 40% dos casos. Nessa situação, considerada uma emergência médica, grandes áreas cerebrais estão ameaçadas pelo fato de não receberem mais sangue. Por isso, é recomendado que a assistência especializada ocorra até quatro horas e meia depois do surgimento dos primeiros sintomas. Hoje, no Sistema Único de Saúde (SUS), o protocolo é que os pacientes recebam apenas o tratamento com medicação, um trombolítico.
A partir de 2015, pesquisas em países de alta renda — Estados Unidos, Reino Unido e Holanda, por exemplo — passaram a demonstrar a efetividade da trombectomia contra o AVC isquêmico agudo. A cirurgia é conduzida nesses locais e também em hospitais particulares no Brasil. Quando provocado sobre a adoção do procedimento no SUS, o Ministério da Saúde argumentou que faltavam evidências sobre os efeitos da cirurgia na população brasileira e no sistema público de saúde.
O estudo Resilient foi criado para responder a essa demanda, sob coordenação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os dados publicados na The New England Journal of Medicine são os primeiros a demonstrar a eficácia da terapia combinada em um país em desenvolvimento. “Foram tão contundentes que os publicamos na maior revista científica médica do mundo”, ressalta Octávio Marques Pontes-Neto, integrante do estudo e vice-coordenador do Departamento Científico de Doenças Cerebrovasculares, Neurologia Intervencionista e Terapia Intensiva em Neurologia da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).
Reação internacional Segundo o neurologista, os resultados do Resilient, que contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), estão sendo encaminhados ao Ministério da Saúde. Procurado pelo Correio, o órgão não se manifestou sobre o tema e possíveis mudanças no protocolo do SUS. Outros países, porém, já têm reagido positivamente ao trabalho inédito.
“Estamos sendo cumprimentados por colegas do mundo inteiro porque, apesar dos efeitos da trombectomia já terem sido demonstrados em países desenvolvidos, a maior parte dos casos de AVC no mundo, cerca de 80%, ocorre nos países em desenvolvimento e, em muitos desses lugares, pessoas ainda estavam cética quanto aos efeitos do procedimento. Nosso estudo mostra que a trombectomia mecânica deve ser implantada de forma mais abrangente”, diz Octávio Marques Pontes-Neto, também coordenador da Rede Nacional de Pesquisa em AVC.
Para os autores do Resilient, o impacto no Brasil é “imensurável”. O país registra anualmente cerca de 400 mil casos de AVC, sendo 80% deles isquêmicos. Dessa forma, de 96 mil a 128 mil poderiam ser tratados com a combinação de terapias. “Vale lembrar que o AVC é a primeira causa de morte e de incapacidade no país. São mais de 100 mil óbitos por ano em razão dele. Realmente, é um problema de saúde pública, é uma epidemia, e no Distrito Federal não é diferente. Trazer a trombectomia para o SUS é adotar uma modalidade de tratamento que trará ganhos imensuráveis”, enfatiza Letícia Rebello.
A neurologista destaca ainda que os benefícios não se restringem aos pacientes. O estudo também sinaliza vantagens para o sistema de saúde. Por exemplo, o tempo médio de internação cai de um mês para cinco dias. “É um procedimento mais caro quando você analisa em uma perspectiva micro. Mas esse tipo de AVC é muito grave, pode deixar sequelas. E esse paciente reinternam mais, tem mais gastos com complicações. Se a gente avaliar em um nível ainda maior, pensando na população economicamente ativa, é mais gasto com aposentadoria precoce, com auxílio-doença. Quer dizer, o impacto desse tipo de tratamento é muito grande. Mostramos em termos de custo e efetividade que vale a pena incorporar essa tecnologia”, frisa.
Fonte - Correio Braziliense
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