Ana estava com 68 anos quando decidiu se aposentar para “viver a vida”, a partir de 2020. Os planos incluíam viagens e outros projetos, mas acabaram interrompidos pela pandemia e, em meio a ela, surgiram lapsos de memória. Os episódios se manifestaram pela primeira vez no período de isolamento e levaram especialistas a suspeitar de causas como ansiedade e dificuldades de sono.
A história, porém, ganhou outro rumo após uma avaliação neuropsicológica que consiste em uma série de testes e tarefas para medir a capacidade de recordar palavras, histórias e imagens - e de exames como hemograma e ressonância magnética solicitados por neurologista e geriatra.
Os sintomas sugeriram “Transtorno Neurocognitivo Leve”, associado a dificuldades para recordar, planejar e raciocinar. Há possibilidade de melhora, porém, o caso pode evoluir para demência, como a Doença de Alzheimer, afetando a independência da pessoa em atividades cotidianas.
Registrada no Rio Grande do Norte, a história da natalense ainda está em investigação - e longe de ser um caso isolado.
Pesquisadores da memória e profissionais da área de Neurologia e da Neuropsicologia, que investiga e avalia as relações entre o cérebro e o comportamento humano, confirmam que queixas de "esquecimentos da vida diária" têm aumentado nos consultórios durante a pandemia.
Entre os que mais buscam ajuda estão idosos, estudantes e profissionais da saúde que atuavam na linha de frente do atendimento a casos de Covid. “As principais queixas são relacionadas a memórias recentes, de situações do dia a dia, de esquecerem coisas que precisavam fazer, como uma tarefa para entregar e horários de compromissos”, descreve a neuropsicóloga Joísa Araújo, com base em atendimentos no setor privado e no Centro de Reabilitação Física, Auditiva e Intelectual instalado no Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi e no Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, do Instituto Santos Dumont (ISD), em Macaíba. “São pessoas que nunca tinham procurado um profissional para avaliar a memória e que agora chegam com queixas como ‘eu não estou conseguindo aprender, não estou conseguindo estudar para o concurso, não consigo dar conta de memorizar tudo o que preciso fazer, porque tenho também uma carga gigante de trabalho remoto junto com a demanda da casa, dos filhos, ou de cuidado de outras pessoas”.
O déficit de memória pode ser causado por falta de vitamina B12, por problemas de tireoide, distúrbios do sono, ou por condições de saúde mais graves.
“Em pessoas mais jovens essas queixas estão mais associadas à ansiedade e depressão, sintomas que têm aumentado nestes meses e que podem exacerbar a auto percepção de problemas cognitivos e/ou mesmo levar a prejuízo cognitivo”, observa Sônia Brucki, membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
O esquecimento no dia a dia também pode ser a ponta do iceberg de possíveis transtornos de déficit cognitivo, como o cogitado em *Ana, e de doenças neurodegenerativas, a exemplo do Alzheimer.
No caso de idosos com comprometimento cognitivo, cresceram os relatos de piora no quadro, muitas vezes porque a convivência mais próxima à família, agora em trabalho ou estudo remoto, facilitou a percepção de dificuldades.
“Outra possibilidade é que os indivíduos com problemas cognitivos podem ficar piores devido ao isolamento, à diminuição de atividades sociais, físicas, ou mesmo de tarefas que estimulavam sua atividade cerebral fora de casa”, diz Sônia Brucki.
A instabilidade política e econômica, incertezas envolvendo a oferta de vacinas e a onda de desinformação sobre a pandemia que invadiram a rotina no meio dessa crise também têm mexido com a cabeça dos brasileiros e podem impactar indiretamente a memória, diz o médico, doutor em Neurologia, professor-pesquisador e coordenador do Centro de Reabilitação do ISD, Hougelle Simplício.
Pesquisa
Os potenciais efeitos de todo esse contexto têm chamado a atenção de pesquisadores em diversos países, com concentração de estudos nos Estados Unidos e na Europa.
“A pesquisa mais abrangente foi conduzida pela Associação de Alzheimer do Reino Unido e demonstrou um aumento de 54% em dificuldade de memória na população investigada com Alzheimer durante o isolamento social da pandemia”, diz Hougelle Simplício.
Pessoas com outra doença degenerativa, o Parkinson, também pioraram no mundo inteiro e no Rio Grande do Norte não foi diferente. “A queixa de falta de memória está muito mais comum do que antes. Praticamente todos os pacientes que atendemos no Centro de Reabilitação do ISD já reclamaram”, afirma o especialista. O Centro atende cerca de 50 pacientes por mês na clínica de Parkinson, por meio do SUS.
Leituras, jogos de raciocínio e uma rotina de estudos e trabalho ajudam a estimular a memória, assim como a prática regular de atividades físicas auxilia na prevenção de possíveis problemas relacionados. Entretanto, no caso de dificuldades confirmadas, a reabilitação cognitiva com ajuda profissional pode ser necessária. Esse serviço é oferecido por Centros de Reabilitação, aos quais instituições como o ISD e a UFRN são integradas. Especialistas afirmam que o diagnóstico precoce é fundamental.
A questão, segundo Hougelle Simplício, não deve ser motivo de pânico para a população, mas merece atenção. “Algumas pessoas acham que o que estamos observando será transitório, que as pessoas (afetadas) vão voltar a recuperar a capacidade de forma integral. Outras são menos otimistas, mas não se sabe ainda. Não há dados sobre isso”.
O especialista explica que existem esquecimentos considerados normais, mas que é preciso atenção a sinais de alerta. “A perda normal de memória relacionada à idade, por exemplo, não impede a pessoa de viver uma vida plena e produtiva. É possível esquecer ocasionalmente algumas coisas. Mas mudanças de humor e comportamento sem motivo aparente merecem atenção”, explica, ressaltando que “a perda de memória que atrapalha a vida é um dos primeiros ou mais reconhecíveis sinais de demência”.
No Brasil, as pesquisas sobre o tema estão em fase preliminar. “A pandemia é um evento que está afetando a população inteira ao mesmo tempo e essas são perguntas importantes a serem respondidas pela ciência”, diz o professor-pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, Ramon Hypólito.
A pesquisadora Maria Carolina Gonzalez, também do Instituto, indica que déficits de memória poderiam estar relacionados com níveis elevados de ansiedade.
“O impacto negativo na memória decorre de qualquer situação em que o ser humano fique exposto, que gere estresse ou ansiedade excessivos. A pandemia, o medo da Covid-19 e o isolamento social das pessoas gera ansiedade e sentimentos negativos à maioria de nós e, portanto, é esperado que afete nossa memória”, complementa Hougelle Simplício, também pesquisador no ISD.
O Instituto está desenvolvendo pesquisas relacionadas à pandemia. Estudos feitos com ratos sugerem, por exemplo, que o isolamento social durante a infância pode afetar a habilidade de interagir socialmente na vida adulta. O estudo, coordenado pelo pesquisador Edgard Morya, é um dos que envolvem alunos do Mestrado em Neuroengenharia do Instituto.
Fonte: Tribuna do Norte
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